8.3.08

A OBRA E A GRAÇA DA ESPANHA

Em virtude do que o governo espanhol vem fazendo com os brasileiros, pela forma perversa, cruel, abusiva e arrogante com que vêm sendo deportados muitos compatriotas nossos daquele país, pretendo iniciar uma pequena série, chamada "As caras da Espanha", para nos lembrar de alguns bons exemplos do que é ser espanhol. Para mostrar que o lobo perde o pelo, mas jamais o vício, comecemos então nossa análise com este excelente texto de Por Voltaire Schilling, publicado originalmente no CMI:

"Que não viessem os republicanos e os liberais, como o escritor Pérez Galdós, com modismos: a verdadeira Espanha era católica ortodoxa e monarquista até as raízes. Um bastão da Contra-Reforma. Para defender a sua versão da história nacional é que Marcelino Menéndez y Pelayo, polímata eruditíssimo, editou a monumental Historia de los Heterodoxos Espanõles, que veio a público entre 1880 e 1882.

De altíssima qualidade literária, o ensaio dele tornou-se a Bíblia do tradicionalismo ibérico. No passado, no Medievo, assegurou Menéndez y Pelayo, a Igreja e o Trono viram-se ameaçados por uma interminável gama de seitas de "alumbrados", de iluminados, de místicos, de magos e bruxos, que se somavam à heresia dos luteranos, cujo objetivo final era desacreditar os valores do catolicismo e da monarquia.

Em tempos mais próximos, no campo da filosofia, por exemplo, o incômodo vinha de fora na forma do jansenismo (dissidência do catolicismo francês), do iluminismo francês (de Voltaire e caterva) e do liberalismo, com sua ênfase na secularização da sociedade e na defesa da separação da Igreja do Estado, como estava ocorrendo em boa parte do mundo de então. Menéndez y Pelayo, então um expoente da extrema direita espanhola, exaltou a Inquisição pelo seu papel inquebrantável na perseguição e eliminação efetiva de quem ousasse destruir a verdadeira Espanha: "[O Santo Ofício] fez o que era humano para atalhar o mal".

Deste modo, para ele, qualquer idéia reformista que almejasse vir a oxigenar os sombrios costumes nacionais era uma blasfêmia, merecedora de ser enfrentada com a mesma competência que o grande inquisidor Tomás de Torquemada e o cardeal Cisneros, sucessor dele, haviam tratado os heréticos no passado. Ainda que, em pleno século 20, as mulheres espanholas, sempre de preto, trancadas em casa, como García Lorca mostrou na peça La Casa de Bernarda Alba, de 1936, tivessem todos os motivos para serem batizadas de "Angústias", "Martírios", "Socorro" ou "Dolores".

Todavia, coetâneo ao aparecimento do primeiro volume da Historia de los Heterodoxos..., Pablo Iglesias, autodidata e tipógrafo, fundava em Madri, no ano de 1879, o PSOE (Partido Socialista Obrero Español), exatamente defendendo a plataforma que o erudito mais temia. Além das conhecidas reivindicações operárias, a agremiação de Iglesias tomou por bandeira a secularização da sociedade espanhola. Os socialistas espanhóis, os modernos heterodoxos, iriam revelar-se adversários formidáveis da Espanha tradicionalista de Menéndez y Pelayo, no firme intento deles de dotar o país com os costumes modernos, tão comezinhos entre países vizinhos com a França.

Entretanto, com a dolorosa guerra civil de 1936-39, ocasião em que a Espanha assemelhou-se a um matadouro no qual até os irmãos se esquartejaram, o movimento pela secularização foi suspenso. O general Franco, vitorioso, que se assinava "Caudilho pela graça de Deus" (introduzindo assim o despotismo por direito divino), quase que fundindo a Igreja e o Estado em nome de Cristo Rei, baniu ou sufocou, por 40 anos, qualquer possibilidade de o país conhecer instituições laicas, revogando a lei do divórcio de 1932 e reintroduzindo o catecismo nas escolas públicas.

Pois recentemente, mesmo transcorridos 30 anos da morte do ditador, democratizado o país, a Igreja e o Estado na Espanha voltam a estranhar-se exatamente pelas questões decorrentes da retomada da política de secularização que congelara-se na década de 30. O PSOE de José Zapatero, o herdeiro atual de Pablo Iglesias, ora no poder, quer dar seguimento à moderna legislação liberal (que parece ser tolerante com o casamento homossexual, além de aperfeiçoar a lei do aborto e o divórcio), todavia foi admoestado pelo próprio papa João Paulo II para não ir tão longe assim... afinal por lá, na Arena, ainda se pega touro pelo chifre."

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